sexta-feira, março 05, 2004

Haiti

Quem anda mais atento aos noticiários já deve ter ouvido as queixas do ex-presidente do Haiti, Jean-Bertrand Aristide, sobre a forma pouco cortez como os Estados Unidos o terão "despachado" do país.

Se Aristide foi ou não metido à força num avião, a meio da noite, não faço ideia - embora possa quase jurar que vi um sorrisinho trocista na boca de Donald Rumsfeld quando ele negou que os EUA tivessem obrigado o homem a ir embora.

Há, no entanto, uma coisa que posso garantir: os americanos estão muito habituados a lidar de uma forma...hum...digamos, pouco simpática com os líderes do Haiti.

Para exemplificar, vou só relatar uma das muitas histórias dos quase vinte anos (1915-34) em que os EUA controlaram directamente o país. Se ela aconteceu exactamente assim ou não, é secundário. O que interessa aqui é que ela ilustra a forma "desinibida" como os marines orientavam os assuntos locais.

Logo no início da presença militar norte-americana, em 1915, Washington quis dar uma cobertura legal à ocupação do Haiti. Fez-se (no Departamento de Estado, claro está) um tratado entre os dois países, que concedia aos EUA controlo sobre as finanças, as alfândegas e a polícia haitianas. Ou seja, tudo o que importava. O acordo era válido por dez anos, e renovável por outros dez, se qualquer uma das partes assim o desejasse. Como se já não fosse suficientemente seguro, ainda dava aos americanos o direito de intervirem militarmente em caso de incumprimento.

Ora, o problema com estes tratados é que têm de ser assinados pelas duas partes. E, neste caso concreto, o então presidente do Haiti, Philippe Dartiguenave, não estava com muita vontade de assinar. O senhor em causa até tinha sido escolhido a dedo (os marines tinham "supervisionado" a votação na Assembleia Nacional, e nem sequer se deram ao trabalho de esconder as baionetas), mas ele lá deve ter achado que o que é demais, é demais...

Bem, mas, como se costuma dizer, «a espada é mais forte do que a pena». O major Smedley Butler, um marine que já era uma lenda viva entre os seus camaradas, foi enviado para obter a necessária assinatura. O que aconteceu a seguir, ninguém sabe ao certo. Sabe-se que o tratado voltou assinado e que começou a correr a lenda de que Butler tinha obtido a rubrica na casa-de-banho. Passo a explicar: chegando ao palácio presidencial, o marine descobriu que Dartiguenave se tinha escondido na dita instalação sanitária. Plantou-se à porta, mas nada. O presidente recusava-se a sair. Smedley Butler, que nunca foi homem de se deter com nada, saiu, pôs uma escada na parede, subiu e entrou na casa-de-banho pela janela. Apanhou o presidente sentado na sanita (mas com as calças em cima), ordenou-lhe que assinasse o tratado, e ele assinou - que remédio...

A história é chocante, mas é indiscutível que o período em que os americanos estiveram no Haiti foi talvez o menos mau dos duzentos anos de independência que o país já tem. Não é políticamente correcto dizer-se isto, mas o Haiti é um país falhado. Foram duzentos anos a oscilar entre o caos e as ditaduras sangrentas. Será mero acaso que, na presente crise, não há uma única voz a levantar-se contra a presença militar norte-americana? Aristide subiu ao poder graças ao apoio americano, mas os guerrilheiros passeiam-se nas ruas com camisolas e lenços onde aparece a bandeira dos EUA.

Não defendo um regresso ao colonialismo, mas não será uma boa altura para pensar num outro rumo (pelo menos temporário) para este e outros paises em situação semelhante? Não seria melhor colocá-los sob responsabilidade directa das Nações Unidas, transformando-os numa espécie de protectorado da Humanidade?

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