terça-feira, agosto 24, 2004

A Sul II

Um dos grandes rivais de Scott na exploração antártica foi outro britânico, Ernest Shackleton. É precisamente de uma das viagens deste que trata grande parte do livro que mecionei no post anterior: "Endurance", de F. M. Worsley.

O título da obra é igual ao nome do navio que levou a expedição até à Antártida. Worsley era precisamente o comandante da embarcação e um dos homens em que Shackleton mais confiava.

O objectivo da viagem, que começou um dia depois do início da 1ª Guerra Mundial, era fazer a travessia do continente gelado com recurso a trenós puxados por cães. Todavia, quando o "Endurance" procurava chegar junto do melhor ponto para desembarcar a expedição, o gelo fechou-se e prendeu o navio para sempre.

O que se passou a seguir foi uma das aventuras mais duras, perigosas e extraordinárias alguma vez enfrentadas por um grupo de seres humanos.

Durante um ano, Shackleton e os seus homens esperaram que aparecesse uma abertura que lhes permitisse continuar viagem. Tal nunca aconteceu e o gelo acabou mesmo por esmagar o navio e afundá-lo. Shackleton já tinha previsto que isso ia acontecer, pelo que foi possível salvar praticamente todo o material necessário e três barcos salva-vidas.

Com o afundamento do "Endurance", não restou outra solução senão arrastar tudo isso, à força de braços, durante muitos quilómetros. Com as placas de gelo em que se deslocavam a quebrarem-se constantemente, foi com algum alívio que finalmente lançaram as embarcações ao mar. Com poucos alimentos (até aí tinham sobrevivido comendo pinguim e foca), os 28 membros da expedição rumaram à ilha do Elefante, o pedaço de terra firme mais próximo. O tempo e o mar estavam horríveis, mas nada comparável com que alguns deles iam enfrentar a seguir.

Shackleton sabia que ficar na ilha do Elefante era a morte certa. Nenhum barco se atrevia a navegar por aquelas paragens. Não iria haver socorro. A única solução era pegar num dos dois barquitos que tinham trazido e tentar alcançar território habitado. Assim, depois de algum tempo de preparação, Shackleton, Worsley e mais quatro outros membros da expedição embarcaram no "James Caird" e rumaram em direcção à colónia baleeira do Geórgia do Sul, a cerca de 1200 quilómetros de distância. Levavam comida só para três semanas, porque sabiam que se não chegassem ao seu destino nesse espaço de tempo não tinham qualquer hipótese de sobreviver. Os restantes membros da expedição ficaram na ilha do Elefante, à espera que os outros trouxessem a tão esperada missão de salvamento.

As semanas seguintes no "James Caird" foram de um sofrimento atroz e de um heroísmo gigantesco. Praticamente toda a viagem foi feita no meio de tempestades ciclónicas (as do Antártico são as mais intensas dos sete mares). Todos os tripulantes estiveram encharcados desde o primeiro ao último dia - e isto com temperaturas de muitos graus negativos. Como cama tinham as pedras que serviam de lastro ao barco.

Nestas condições, a sobrevivência só se tornou possível porque, por incrível que pareça, mesmo assim conseguiam cozinhar a bordo. Com um pequeno fogão alimentado a gordura de foca, preparavam uma mistela de vários componentes e aqueciam bebidas. Cedo se habituaram a tomar tudo a escaldar, e provavelmente foi isso que lhes salvou a vida.

Outro dos problemas gravíssimos que tiveram que enfrentar e vencer foi a orientação. Ver o sol ou o horizonte, só por milagre; com os balanços, Worsley só conseguia manter-se de pé para fazer as medições astronómicas com a ajuda de dois homens, e mesmo assim só correndo o grande risco de todos serem cuspidos para o mar. Ao todo, nessas duas terríveis semanas, o capitão do "Endurance" só conseguiu fazer quatro medições - e nenhuma delas dava a miníma garantia de ser correcta.

Por tudo isto, não admira que a viagem do "James Caird" até à Geórgia do Sul seja considerada um dos maiores feitos de navegação da era moderna. Só um grande marinheiro como Worsley conseguiria guiar por estimativa uma "casca de noz" por 1200 quilómetros do mais tempestuoso mar da Terra. Ao fim de 14 dias de tormento incalculável, o pequeno barco conseguiu alcançar a costa da ilha, mas as provações ainda não estavam terminadas.

Apesar da enorme proeza que tinha sido chegar até ali, a acostagem tinha acontecido do lado oposto da ilha àquele onde se situava a estação baleeira. Voltar a embarcar no "James Caird" era suicídio, pelo que Shackleton decidiu fazer a travessia da Geórgia do Sul a pé. Ele, Worsley e outro homem partiram, deixando para trás os elementos mais enfraquecidos. Nunca antes algum homem tinha feito tal viagem. O interior da ilha era preenchido inteiramente por glaciares e enormes montanhas geladas, tão inóspitas que nunca ninguém se tinha atrevido a explorá-las.

Durante quase dois dias os três homens caminharam praticamente sem parar. Descansar mais do que alguns minutos era a morte certa. O vento fortíssimo e a temperatura glacial condenavam rapidamente quem parasse.

Finalmente, ao fim de meses e meses de martírio, Shackleton, Worsley e Crean conseguiram alcançar a salvação na estação baleeira da baía de Stromness. Bateram à porta do administrador local, e este, apesar de já os ter acolhido numa anterior paragem, não os reconheceu. Há mais de um ano que nenhum deles tomava banho ou mudava de roupa.

Salvar os outros três homens que tinham ficado no outro lado da ilha foi relativamente fácil. Muito mais complicado foi resgatar os membros da expedição que estavam á espera na ilha do Elefante. Só passados muitos meses e três tentativas falhadas devido ao gelo, é que Shackleton conseguiu finalmente salvar todos os membros da missão. Apesar do enorme sofrimento por que todos tinham passado, nem um único homem sob o comando directo de Shackleton morreu.

Mesmo com todas estas as provações, o apelo do Antártico era demasiado forte para estes homens. Em 1922, muitos deles voltaram a acompanhar o seu líder em mais uma expedição. Mais uma vez escalaram a Geórgia do Sul, e foi aí que Sir Ernest Shackleton faleceu aos 48 anos de idade.

Foi também aí, por vontade da sua mulher, que foi sepultado. Afinal, pensou ela, era muito mais apropriado que a sua última morada fosse tão perto quanto possível da parte do mundo que ele mais amava: o Antártico.

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