Embora esta estória não esteja relacionada com História, é tão tenebrosa que acho que merece ser contada. Uma pessoa minha amiga conhece uma jovem (que vamos chamar “A”) licenciada e que está a efectuar um mestrado que se queixou de recentemente a avó estar a ficar velha. “A”, não estava com os seus pais para “aturar a velha” (palavras textuais) e então tiraram-na da sua casa onde norava sozinha (note-se, a casa da “velha”) e colocaram-na num lar (e ficaram com a casa). Qual foi o espanto de “A” ao descobrir que a casa da “velha” estava repleta de livros aos milhares (fora professora), velhos (alguns com mais de 100 anos). Tiveram um enorme trabalho para deitar tudo ao lixo (os livros pesam muito). Nem sequer teve o lampejo de tentar vender os livros num alfarrabista ou doa-los: eram apenas livros velhos. Só não devem ter deitado a avó para o lixo porque se calhar dava muito nas vistas e a vizinhança era capaz de reparar.
Correndo o risco de parecer maldoso, espero duas coisas: que a pobre senhora tenha Alzheimer para não se ter apercebido do que se passou ao despejarem-na num lar e privarem-na dos livros que imagino lhe fossem queridos e que à sua neta (A”) lhe façam exactamente o mesmo só que estando lúcida. O pior, é que como me disse a minha colega, esta gente costuma ter sorte.
Quando amigos meus se queixam de que os políticos e pessoas de outras áreas têm uma indiferença pelas coisas da cultura, acho isso coisa de pouco monta por comparação a isto.
3 comentários:
Na minha terra temos um ditado, que na maioria dos casos se tem revelado certeiro: "Filho és, pai serás; tudo o que fizeres receberás!"
Ó Parca, esta foi, com efeito, um bocado ao lado!
Fiquei na dúvida contra o que é que te estavas a insurgir mais: se o destino da pobre senhora ou dos respectivos livros.
Se é o primeiro, a senhora só deverá ter sido 'colocada' no lar por não ser capaz de viver independentemente. E com uma família do quilate que a tua descrição parece implicar, a senhora provavelmente terá melhor tratamento no lar do que 'seio' da família.
Se é o destino dos livros que te aflige, ora pensemos um pouco sobre quais poderiam ser as alternativas. Primeiro a família. Esta, por certo, não teria paciência nem interesse para os aproveitar, logo, conservá-los seria o mesmo que sepultá-los (além do que os livros têm o incómodo hábito de ocuparem espaço em casa – embora também possam ajudar à decoração, mas isto é questão de gostos que, como se sabe, não se discutem). Segundo podiam ao menos vendê-los a um alfarrabista. Mas, desenganemo-nos, o dito alfarrabista provavelmente encarregar-se-ia de mandar para o lixo a maioria da colecção da senhora, com excepção de alguns, poucos, títulos, que lhe sugerissem mercado fácil. E penso não ser preciso recordar o ínfimo nível de literacia do nosso alfarrabista típico (ou livreiro, diga-se de passagem) – provavelmente uma condição necessária para semelhante indústria, pois qual seria o verdadeiro bibliófilo (tirando o Rousseau) que ganharia a vida a vender os próprios livros? Terceiro podiam doá-los à biblioteca municipal, ou da Junta de Freguesia, da Paróquia, ou da Associação Desportiva e Recreativa local. Bom, ao menos tinha-se a certeza que os livros não iriam parar ao aterro municipal, o que já é reconfortante. Mas, por outro lado, quem é que os leria? Ainda por cima se “velhos” como a senhora. Tirando a hipótese remota (dada a profissão consabidamente mal remunerada da senhora) de a colecção em causa ser composta de preciosidades, as bibliotecas locais já provavelmente teriam cópias mais recentes dos mesmos livros. Ou se não, provavelmente a probabilidade de alguém os querer ler seria pequena (a oferta também aqui cria a sua própria procura).
Isto para não rebater na tecla da decadência dos hábitos de leitura entre as gerações mais jovens (para quem as ditas bibliotecas são afinal construídas), mais interessadas em “devorar” o último volume da saga Harry Pottter, do que em em ler as histórias de Madalena e Henrique de Souselas, Basílio e Luísa, ou mesmo de Simão e Teresa. Mas também não se perde nada, desde que a TV “de serviço público” começou a prodigalizar as massas com adaptações “modernas” dos clássicos. É só pena que ainda se tenha de ler, por imposição estatisante e dirigista da 5 de Outubro, a história incestuosa de Carlos e Maria Eduarda. Mas divago - avancemos para a quarta hipótese: a senhora ingressar no lar com os livros. Desnecessário será dizer que só a troco de substancial compensação monetária qualquer instituição de amparo à velhice arranjaria espaço para semelhante bagagem. Além do que também não ficou claro da tua descrição se a senhora ainda estaria em condições (ou com vontade) de fazer uso da sua biblioteca. Numa lógica de afectação eficiente de recursos mais vale investir em mais uma cama para mais um idoso, do que em prateleiras.
Não sei se estou a cobrir todas as possibilidades, mas acho que enumerei as mais importantes. Como bibliófilo também me custa que os livros tenham ido simplesmente parar “ao contentor”, mas, se fosse a ti, só lamentava que a tua amiga não te tivesse apresentado à jovem “A” antes da catástrofe, para que te deixasse seleccionar uns quantos volumes! ;-)
PS: ainda estou à espera da tradução de uma certa frase (quem espera desespera).
A tua maneira de pôr as coisas é tristemente realista. Não gosto de ti. Infelizmente "A" só contou a história à minha colega algum tempo depois, o que impossibilitou de eu ir tentar fazer um salvamento de alguns exemplares.
Enviar um comentário