quinta-feira, outubro 09, 2003

Guerra Civil Americana II

O leitor “Astinus”, cujo comentário desde já agradeço, põe grandes reservas à ideia de que os Estados Unidos tenham recuperado facilmente da divisão que conduziu à guerra civil.

Esta é uma questão sobre a qual o debate académico (e não só) é ainda bastante aceso. Para muitos americanos, especialistas ou não, “Astinus” estará mais perto da verdade do que eu. Não há dúvida que a Reconstrução (o período pós-guerra em que os estados do Sul foram reintegrados na União) foi uma época difícil e traumatizante para os vencidos. A presença militar federal, a “invasão” dos políticos, homens de negócios e simples oportunistas do Norte (os carpetbaggers), e ainda o facto de muitos ex-escravos se recusarem a manter a anterior relação de subserviência total, tudo isto causou, para além da guerra, traumas duradouros na sociedade sulista.

Lincoln, aliás, tinha plena consciência disto. O período final da guerra e os primeiros dias de paz, até ao seu assassinato, mostram-nos um presidente permanentemente empenhado em estabelecer uma paz magnânima com o Sul. O objectivo é claro: assegurar um pós-guerra pacífico, que permita a solidificação definitiva da União.

Com o assassinato de Lincoln, o controlo da política de Reconstrução passou para o Congresso. E aí, a animosidade em relação ao Sul era muito grande. Os brancos sulistas sentem que Washington os trata como cidadãos de 2ª. É nessa altura que surge o Ku Klux Klan, liderado por Nathan Bedford Forrest, um dos melhores comandantes de cavalaria no exército confederado. O KKK aparece não só como uma resposta ao clima de desordem que atravessa o Sul, como também uma forma dos brancos sulistas voltarem a assumir o controlo da situação (a ideologia vem mais tarde). Se quisermos ver como a mitologia sulista da “Causa Perdida” reconstruiu todo este período, basta ver esse extraordinário filme chamado “O Nascimento de uma Nação”, de D. W. Griffith.

É também indiscutível que, ainda hoje, há muitos brancos do Sul (os chamados “neoconfederados”) que olham com nostalgia para o breve período em que formaram uma entidade política autónoma, conhecida por Estados Confederados da América.

Posto isto, há que lembrar um facto incontornável: desde 1865 não houve um único movimento minimamente credível a propor uma nova secessão dos estados do Sul. Se pensarmos que a guerra durou 4 anos e matou cerca de 600 mil pessoas (ainda hoje é o conflito mais sangrento da história americana), é absolutamente notável que não tenham voltado a haver grandes erupções de violência secessionista nos Estados Unidos. Compare-se este quadro histórico com o de qualquer outro país que tenha passado por um conflito civil intenso, e rapidamente se percebe que este é mesmo um caso especial.

Russell F. Weigley, em “A Great Civil War” (Indiana University Press), propõe uma tese interessante que explica esta especificidade. Para ele, os confederados nunca se libertaram completamente da sua lealdade à União. Quase todos os principais líderes políticos e militares do Sul serviram a União fielmente durante muitos anos, alguns em altos cargos. Mesmo com a guerra, era-lhes difícil quebrar um laço emocional tão profundo. Daí que, perdida a guerra convencional, nenhum deles optou pela guerrilha, essa eterna praga dos países em guerra civil (veja-se Portugal durante as Guerras Liberais). Todas as forças confederadas, mesmo aquelas que tinham feito guerrilha sem piedade, renderam-se ordeiramente no final do conflito. Weigley diz, e para mim com razão, que os americanos tinham um problema a resolver – a escravatura. Libertados os escravos, já nada havia que os separasse.

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