Claro que outros elementos vinham dificultar o acordo: o uso de qualquer palavra implicava a sua definição absoluta para representar uma realidade teológica, mas a necessidade de usar termos vindos da língua vulgar levava a confusões e más interpretações. A progressiva ignorância do grego pelos latinos dificultava o diálogo (os orientais nunca se tinham preocupado em aprender mais do que o latim básico- quando se davam a esse trabalho). Depois de intensas negociações (no qual se notabilizou Basílio de Cesareia), os niceianos e elementos ditos arianos (mas que defendiam na prática a doutrina de Niceia com um vocabulário ligeiramente diferente) no Oriente acabaram por reconhecer a fé defendida encarniçadamente pelos ocidentais, num concílio em Antioquia em 379. A subida ao poder de Imperadores Niceianos acabou por dar o apoio imperial e condenar à clandestinidade os defensores do Homoios, e a bem dizer, de todas as outras tendências cristãs não “católicas”, como outros grupos de aí em diante apelados de heréticos, os Judeus e os Pagãos. Estava estabelecida a doutrina que com algumas clarificações (por S. Agostinho), nunca mais seria seriamente posta em causa na maioria dos povos cristãos (com excepção talvez dos monofisitas no oriente). Mesmo o rompimento entre católicos e protestantes seria a nível prático (culto de imagens, hierarquia, etc: o ocidente nunca teve a subtileza grega).
Com Teodósio, que conseguiu reunificar as duas metades do Império (394), foi estabelecido que o catolicismo definido em Niceia era a religião oficial do Estado Romano (e não apenas apoiada), que recebia o seu apoio, e que a apoiava contra todas as outras tendências. De facto, a tendência do Império Romano era tornar-se um estado totalitário para assegurar a unidade (desde Diocleciano que tendera impor uma espécie de paganismo oficial e único), e a existência de uma religião com uma divindade única (no qual o Imperador era de algum modo o seu representante, muito mais do que qualquer Bispo), só facilitava esse processo. É provável que as lutas internas do cristianismo tivessem acelerado o processo ao apelar constantemente ao Imperador, e levar este a tomar um papel de árbitro (e jogador também interessado).
De facto, muito mais do que o Papa na época (que era apenas o Bispo de Roma, embora com um pouco mais de prestígio que os patriarcas orientais, mas que tinha a vantagem de ter uma certa obediência tácita, embora não explícita dos restantes bispos ocidentais) o Imperador (quer o de Ravena no ocidente, quer o de Constantinopla no Oriente) é a figura mais importante da terra. Desobedecer-lhe é um crime de lesa-majestade e contra a ordem divina (claro que a realidade era bastante diferente, com tantos usurpadores, mas o que interessa aqui é a doutrina).
quinta-feira, outubro 30, 2003
quarta-feira, outubro 29, 2003
Arianismo-I
Hoje decidi meter-me num belo vespeiro e falar de teologia, mais concretamente do arianismo.
A fé ariana que tanta importância teve nas relações políticas entre bárbaros e romanos teve a sua origem em Arius um padre de Alexandria da primeira metade do séc. IV. Ao pretender valorizar a posição do Pai no seio da Santíssima Trindade vinha de algum modo desvalorizar a posição do filho. O Pai seria o único verdadeiramente não criado, existente desde sempre, eterno, enquanto o Filho (logos) embora não fosse criado do ponto de vista cronológico e estivesse acima de todas as outras criaturas pela sua condição divina, não partilhava de todos os privilégios do Pai. Não pretendia negar a Trindade, mas apenas valorizar o pai (e não como alguns diriam mais tarde, negar a divindade de Cristo). Foi imediatamente contestado e depois de algumas peripécias, fez-se um concílio em Niceia em 325 do qual saiu a fórmula ainda hoje usada: “Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado e não criado, consubstancial ao Pai”. Homoousios.
Os arianos saíam completamente derrotados, pois esta posição dava um total equilíbrio entre os vários elementos da Trindade. Esta expressão iria provocar polémica, pois alguns consideravam que se estava a valorizar em demasia o elemento Divino do Filho, em detrimento do elemento humano do Logos. O ocidente latino, pouco afeito às polémicas teológicas ficou satisfeito com essa conclusão, mas o oriente grego ficaria em polvorosa entre arianos, niceianos e outras posições ainda mais subtis. O Imperador (Constantino) iria vacilar entre várias posições. O seu filho Constâncio II iria ficar pela fidelidade ariana. O comportamento dos que conseguiam a colaboração Imperial (independentemente da posição) seguiria sempre o mesmo padrão: calúnia sobre o comportamento moral dos adversários e seu exílio. Os arianos divididos também entre si, iriam fazer concílios (Antioquia em 345), existindo posições que eram praticamente não se distinguiam das niceianas a não ser pelo uso do termo Homoousios.
Passados uns anos surgiria um diácono de Antioquia elaborou uma nova doutrina saída do arianismo, mas que levava este a um maior rompimento com as doutrinas Niceianas: o filho não era em nada semelhante ao Pai. Essa posição seria mitigada anos mais tarde com uma posição mais moderada, considerando que o filho era semelhante ao Pai (homoios). Ora alguns arianos chegariam a considerar que o filho era em tudo igual ao pai, mesmo em substância. Sem o pretenderem, acabavam por partilhar a posição dos defensores do Homoousios. Mas as suas opiniões iniciais tornavam-nos suspeitos, o que dificultava um acordo.
A fé ariana que tanta importância teve nas relações políticas entre bárbaros e romanos teve a sua origem em Arius um padre de Alexandria da primeira metade do séc. IV. Ao pretender valorizar a posição do Pai no seio da Santíssima Trindade vinha de algum modo desvalorizar a posição do filho. O Pai seria o único verdadeiramente não criado, existente desde sempre, eterno, enquanto o Filho (logos) embora não fosse criado do ponto de vista cronológico e estivesse acima de todas as outras criaturas pela sua condição divina, não partilhava de todos os privilégios do Pai. Não pretendia negar a Trindade, mas apenas valorizar o pai (e não como alguns diriam mais tarde, negar a divindade de Cristo). Foi imediatamente contestado e depois de algumas peripécias, fez-se um concílio em Niceia em 325 do qual saiu a fórmula ainda hoje usada: “Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado e não criado, consubstancial ao Pai”. Homoousios.
Os arianos saíam completamente derrotados, pois esta posição dava um total equilíbrio entre os vários elementos da Trindade. Esta expressão iria provocar polémica, pois alguns consideravam que se estava a valorizar em demasia o elemento Divino do Filho, em detrimento do elemento humano do Logos. O ocidente latino, pouco afeito às polémicas teológicas ficou satisfeito com essa conclusão, mas o oriente grego ficaria em polvorosa entre arianos, niceianos e outras posições ainda mais subtis. O Imperador (Constantino) iria vacilar entre várias posições. O seu filho Constâncio II iria ficar pela fidelidade ariana. O comportamento dos que conseguiam a colaboração Imperial (independentemente da posição) seguiria sempre o mesmo padrão: calúnia sobre o comportamento moral dos adversários e seu exílio. Os arianos divididos também entre si, iriam fazer concílios (Antioquia em 345), existindo posições que eram praticamente não se distinguiam das niceianas a não ser pelo uso do termo Homoousios.
Passados uns anos surgiria um diácono de Antioquia elaborou uma nova doutrina saída do arianismo, mas que levava este a um maior rompimento com as doutrinas Niceianas: o filho não era em nada semelhante ao Pai. Essa posição seria mitigada anos mais tarde com uma posição mais moderada, considerando que o filho era semelhante ao Pai (homoios). Ora alguns arianos chegariam a considerar que o filho era em tudo igual ao pai, mesmo em substância. Sem o pretenderem, acabavam por partilhar a posição dos defensores do Homoousios. Mas as suas opiniões iniciais tornavam-nos suspeitos, o que dificultava um acordo.
sábado, outubro 25, 2003
As Origens Míticas da Galiza
Considerando esta região uma das sete terras celtas (sendo as outras a Irlanda, Cornualha, a Ilha de Man, a Bretanha, Escócia e Gales), a Gallaecia romana (literalmente Terra de Galos), nome supostamente dado por Júlio César aquando da sua campanha de pacificação destes aguerridos e teimosos guerreiros.
Segundo a tradição popular, a região teria tido desde a Antiguidade uma grande número de visitantes ilustres. Assim, Noé teria desembarcado não no Monte Ararat, mas perto de Noia, aldeia fundada por uma das suas netas, Noela, facto testemunhado pelo brasão da povoação onde se encontram a arca e a pomba. Também Thobel, um descendente de Noé, desembarcou em Gadir (Cádiz), tendo os seus descendentes, os thobelianos, colonizado a península. Um deles, Brigo, instalou-se nas terras compreendidas entre Finisterra e Ortegal. Em Bergondo podem ver-se ainda as ruínas do chamado Palácio do Rei Brigo. Um Brigo fundou a cidade de Chantada, onde ainda hoje existe uma povoação com o nome de Brigos.
Para além das já conhecidas visitas do Apóstolo Santiago (uma vivo e outra morto), a zona recebeu periodicamente a visita da Virgem S. Maria e de Jesus Cristo (infelizmente as suas visitas coincidiam com a destruição de alguma povoação!).
Entrando no campo dos heróis clássicos: Segundo Plínio e Estrabão, Teucro, herói da guerra de Tróia, funda Pontevedra, Diomenes funda Tyde (Tui), Filoctetes, sob comando dos grovios, funda Grove, e Ulisses, segundo algumas tradições, toca nas costas galegas em busca de Ítaca. Até mesmo Hércules se passeia por Brigantia, alterando-lhe nome para Corunha.
Historicamente, os primeiros que falam sobre esta zona são Estrabão e Plínio. mas é Rufo Festo Avieno, poeta romano do século IV, baseando-se na narração de um navegante grego, descreve a sua Ode Marítima a Ibéria do século VI a.C., dando abundantes dados sobre a região. Segundo ele, os primitivos povoadores da zona eram um povo pacífico, de navegadores, comerciantes e constructor de monumentos de pedra: os Oestrymnyos. Este povo foi arrasado por "uma invasão de serpentes", ou pelo menos de homens serpente. Os historiadores estão de acordo que Avieno se refere aos Saefes, nome da primeira das tribos celtas que no século VI a.C. ocupam a Galiza. Novamente a tradição diz-nos que nem a invasão foi tão fácil, nem os Oestrymnyos tão pacíficos. Seriam então grandes feiticeiros e teriam o seus território protegido por poderosos feitiços. Um desses feitiços era o de que todo o inimigo que pisasse a península se convertiria em pedra. Conta a lenda que um príncipe, "chamado" Saefes, conseguiu enganar o feitiço entrando no reino como marido de Forcadinha, filha do chefe dos Oestrymnyos, de quem se apaixonara e teria tido um filho chamado Noro. O seu séquito, formado por homens armados, atacou à traição e destruíu os anfitriões. Mas o feitiço funcionou, embora tardiamente, pois Saefes transformou-se no penhasco conhecido por Ponta de Sagres, e a sua língua mentirosa, partida em sete pedaços (as sete línguas). Em seu redor estão os seus soldados, transformado em pedras e ilhotas para toda a eternidade. Infelizmente, o feitiço também afectou a sua família: mulher e filho são as ilhotas homónimas.
Segundo a tradição popular, a região teria tido desde a Antiguidade uma grande número de visitantes ilustres. Assim, Noé teria desembarcado não no Monte Ararat, mas perto de Noia, aldeia fundada por uma das suas netas, Noela, facto testemunhado pelo brasão da povoação onde se encontram a arca e a pomba. Também Thobel, um descendente de Noé, desembarcou em Gadir (Cádiz), tendo os seus descendentes, os thobelianos, colonizado a península. Um deles, Brigo, instalou-se nas terras compreendidas entre Finisterra e Ortegal. Em Bergondo podem ver-se ainda as ruínas do chamado Palácio do Rei Brigo. Um Brigo fundou a cidade de Chantada, onde ainda hoje existe uma povoação com o nome de Brigos.
Para além das já conhecidas visitas do Apóstolo Santiago (uma vivo e outra morto), a zona recebeu periodicamente a visita da Virgem S. Maria e de Jesus Cristo (infelizmente as suas visitas coincidiam com a destruição de alguma povoação!).
Entrando no campo dos heróis clássicos: Segundo Plínio e Estrabão, Teucro, herói da guerra de Tróia, funda Pontevedra, Diomenes funda Tyde (Tui), Filoctetes, sob comando dos grovios, funda Grove, e Ulisses, segundo algumas tradições, toca nas costas galegas em busca de Ítaca. Até mesmo Hércules se passeia por Brigantia, alterando-lhe nome para Corunha.
Historicamente, os primeiros que falam sobre esta zona são Estrabão e Plínio. mas é Rufo Festo Avieno, poeta romano do século IV, baseando-se na narração de um navegante grego, descreve a sua Ode Marítima a Ibéria do século VI a.C., dando abundantes dados sobre a região. Segundo ele, os primitivos povoadores da zona eram um povo pacífico, de navegadores, comerciantes e constructor de monumentos de pedra: os Oestrymnyos. Este povo foi arrasado por "uma invasão de serpentes", ou pelo menos de homens serpente. Os historiadores estão de acordo que Avieno se refere aos Saefes, nome da primeira das tribos celtas que no século VI a.C. ocupam a Galiza. Novamente a tradição diz-nos que nem a invasão foi tão fácil, nem os Oestrymnyos tão pacíficos. Seriam então grandes feiticeiros e teriam o seus território protegido por poderosos feitiços. Um desses feitiços era o de que todo o inimigo que pisasse a península se convertiria em pedra. Conta a lenda que um príncipe, "chamado" Saefes, conseguiu enganar o feitiço entrando no reino como marido de Forcadinha, filha do chefe dos Oestrymnyos, de quem se apaixonara e teria tido um filho chamado Noro. O seu séquito, formado por homens armados, atacou à traição e destruíu os anfitriões. Mas o feitiço funcionou, embora tardiamente, pois Saefes transformou-se no penhasco conhecido por Ponta de Sagres, e a sua língua mentirosa, partida em sete pedaços (as sete línguas). Em seu redor estão os seus soldados, transformado em pedras e ilhotas para toda a eternidade. Infelizmente, o feitiço também afectou a sua família: mulher e filho são as ilhotas homónimas.
quarta-feira, outubro 15, 2003
Concertos nazis
De entre as lendas que correm, uma delas é que os nazis eram fanáticos por Wagner e a sua música, perfeita encarnação do espírito germânico. Ora as coisas não se passavam exactamente assim...
Quando Hitler tomou o poder (logo em 1933), decidiu reservar os bilhetes de uma temporada de concertos (óperas de Wagner) em Nuremberga dirigida pelo maestro Furtwangler, a membros de topo do partido Nazi (um milhar de bilhetes). Na primeira noite só estavam meia dúzia e ele furioso (por achar um insulto aos artistas ter de actuar numa sala vazia) mandou que encontrassem todos os dignitários faltosos nos cafés e bares; mesmo assim eram poucos e tiveram de os ir buscar a outro género de estabelecimentos...
No ano seguinte tornou obrigatório o aparecimento nos concertos dos beneficiários dos bilhetes e aí tiveram os “pobres” nazis de estar horas a ouvir ópera em vez de se divertir noutros locais: as palmas eram dadas com o entusiasmo que se pode imaginar. Hitler vexado, decidiu que a partir daí, acabavam-se as distribuições de bilhetes, e passasse a ir o público apreciador (e que pagava os bilhetes).
De facto a maioria dos nazis eram pessoas com pouca formação (para o padrões alemães da época: significa que quase todos tinham o liceu concluído), e gostos muito pouco intelectuais (a inteligentzia reduzia-se a Goebbels, Rosemberg, Speer, e mais um punhado), tendo mesmo um desprezo por esses teóricos (afinal, os nazis pretendiam-se partidários da acção). Mas como Hitler gostava de Wagner e era de bom tom nos grupos nacionalistas ouvir esse género de música, toda a gente tinha que fingir que sim.
Quando Hitler tomou o poder (logo em 1933), decidiu reservar os bilhetes de uma temporada de concertos (óperas de Wagner) em Nuremberga dirigida pelo maestro Furtwangler, a membros de topo do partido Nazi (um milhar de bilhetes). Na primeira noite só estavam meia dúzia e ele furioso (por achar um insulto aos artistas ter de actuar numa sala vazia) mandou que encontrassem todos os dignitários faltosos nos cafés e bares; mesmo assim eram poucos e tiveram de os ir buscar a outro género de estabelecimentos...
No ano seguinte tornou obrigatório o aparecimento nos concertos dos beneficiários dos bilhetes e aí tiveram os “pobres” nazis de estar horas a ouvir ópera em vez de se divertir noutros locais: as palmas eram dadas com o entusiasmo que se pode imaginar. Hitler vexado, decidiu que a partir daí, acabavam-se as distribuições de bilhetes, e passasse a ir o público apreciador (e que pagava os bilhetes).
De facto a maioria dos nazis eram pessoas com pouca formação (para o padrões alemães da época: significa que quase todos tinham o liceu concluído), e gostos muito pouco intelectuais (a inteligentzia reduzia-se a Goebbels, Rosemberg, Speer, e mais um punhado), tendo mesmo um desprezo por esses teóricos (afinal, os nazis pretendiam-se partidários da acção). Mas como Hitler gostava de Wagner e era de bom tom nos grupos nacionalistas ouvir esse género de música, toda a gente tinha que fingir que sim.
segunda-feira, outubro 13, 2003
Ano Mil
Bem, já ultrapassámos o milhar de visitas; portanto nada mais adequado do que falar do ano mil.
As datas são convenções (um ano não passa de uma sucessão de dias que se considera fixo) para facilitar a contagem do tempo nas sociedades escritas, mas por questões simbólicas as pessoas preferem determinados números e dão-lhes um enorme valor.
Ora por volta do ano mil do calendário cristão, o sistema de contar o tempo a partir da data que se calculou na alta idade média que fora o nascimento de Cristo ainda não estava muito divulgado fora da Igreja (em Portugal as chancelarias régias só o adoptaram no séc. XV). Claro que a Igreja era detentora do monopólio da cultura escrita por essa altura, mas a esmagadora maioria da população ignorava essa datação. Se alguns meios monásticos poderiam ter feita a associação com a 2ª vinda de Cristo, a maioria preferia manter a atitude tradicional: os fiéis deviam estar sempre preparados para essa vinda sem ter uma data fixa.
A Europa da época continuava a seguir os seus negócios como habitual. Os pequenos reinos da península ibérica resistiam como podiam às investidas de Al-Mansur que chegou a devastar Santiago de Compostela. A França que finalmente tinha paz das razias vikingues, ia ver a dinastia dos Capetos tentar durante séculos restaurar a autoridade régia, uma vez que o reino de França estava espartilhado numa série de grandes feudos: Anjou, Normandia, a Bretanha, a Aquitânia (para só falar dos principais), cada um formando uma entidade que pouco tinha a ver com o reino dos “Francos”. A Itália estava dividida entre muçulmanos, bizantinos, o Sacro Império Romano-Germânico; as emergentes repúblicas italianas estavam teoricamente submissas ao imperador, mas iam-se progressivamente autonomizando.
A Alemanha estava nas mãos firmes dos imperadores germânicos, não tendo sofrido o processo de feudalização extrema que possibilitaria a existência de mais de 300 estados praticamente independentes. O Imperador em teoria era o sucessor dos imperadores de Roma (da parte ocidental do império por oposição ao imperador bizantino que era senhor da parte oriental). Na realidade, a sua autoridade mesmo simbólica não era aceite fora do estado que governava quer estivesse sob a sua alçada directa ou indirecta, pois o princípio que vingava é que cada rei era “imperador” do seu próprio território.
A Inglaterra estava unificada, refizera-se das invasões vikingues mas ainda era um reino muito “germânico” na medida em que as alterações a nível linguístico, cultural e institucional que lhe deram um carácter tão original só se dariam com a invasão normanda de 1066.
Futuros países como a Holanda, Bélgica, Suiça, estavam divididos em feudos sem qualquer consistência. A Europa de leste era partilhada por tribos nómadas na maioria de origem eslava que iriam sedentarizar-se aos poucos e absorver as influências latinas, germânica ou grega conforme os acasos da história mas mantendo uma forte identidade étnica.
E claro, Bizâncio que gozava a sua segunda época de ouro. Com a dinastia dos Nicéforos recuperava a influência perdida: esmagava os búlgaros (o imperador Basílio II ordenou depois de uma batalha que 15000 prisioneiros foram divididos em grupos de 100, em que 99 eram cegados e 1 um deixado zarolho para os conduzir de volta tendo adquirido o cognome de mata-búlgaros), tornando as fronteiras do Danúbio novamente seguras, recuperava parte da Síria aproveitando-se do enfraquecimento político muçulmano, expandia a sua influência para o Cáucaso.
As datas são convenções (um ano não passa de uma sucessão de dias que se considera fixo) para facilitar a contagem do tempo nas sociedades escritas, mas por questões simbólicas as pessoas preferem determinados números e dão-lhes um enorme valor.
Ora por volta do ano mil do calendário cristão, o sistema de contar o tempo a partir da data que se calculou na alta idade média que fora o nascimento de Cristo ainda não estava muito divulgado fora da Igreja (em Portugal as chancelarias régias só o adoptaram no séc. XV). Claro que a Igreja era detentora do monopólio da cultura escrita por essa altura, mas a esmagadora maioria da população ignorava essa datação. Se alguns meios monásticos poderiam ter feita a associação com a 2ª vinda de Cristo, a maioria preferia manter a atitude tradicional: os fiéis deviam estar sempre preparados para essa vinda sem ter uma data fixa.
A Europa da época continuava a seguir os seus negócios como habitual. Os pequenos reinos da península ibérica resistiam como podiam às investidas de Al-Mansur que chegou a devastar Santiago de Compostela. A França que finalmente tinha paz das razias vikingues, ia ver a dinastia dos Capetos tentar durante séculos restaurar a autoridade régia, uma vez que o reino de França estava espartilhado numa série de grandes feudos: Anjou, Normandia, a Bretanha, a Aquitânia (para só falar dos principais), cada um formando uma entidade que pouco tinha a ver com o reino dos “Francos”. A Itália estava dividida entre muçulmanos, bizantinos, o Sacro Império Romano-Germânico; as emergentes repúblicas italianas estavam teoricamente submissas ao imperador, mas iam-se progressivamente autonomizando.
A Alemanha estava nas mãos firmes dos imperadores germânicos, não tendo sofrido o processo de feudalização extrema que possibilitaria a existência de mais de 300 estados praticamente independentes. O Imperador em teoria era o sucessor dos imperadores de Roma (da parte ocidental do império por oposição ao imperador bizantino que era senhor da parte oriental). Na realidade, a sua autoridade mesmo simbólica não era aceite fora do estado que governava quer estivesse sob a sua alçada directa ou indirecta, pois o princípio que vingava é que cada rei era “imperador” do seu próprio território.
A Inglaterra estava unificada, refizera-se das invasões vikingues mas ainda era um reino muito “germânico” na medida em que as alterações a nível linguístico, cultural e institucional que lhe deram um carácter tão original só se dariam com a invasão normanda de 1066.
Futuros países como a Holanda, Bélgica, Suiça, estavam divididos em feudos sem qualquer consistência. A Europa de leste era partilhada por tribos nómadas na maioria de origem eslava que iriam sedentarizar-se aos poucos e absorver as influências latinas, germânica ou grega conforme os acasos da história mas mantendo uma forte identidade étnica.
E claro, Bizâncio que gozava a sua segunda época de ouro. Com a dinastia dos Nicéforos recuperava a influência perdida: esmagava os búlgaros (o imperador Basílio II ordenou depois de uma batalha que 15000 prisioneiros foram divididos em grupos de 100, em que 99 eram cegados e 1 um deixado zarolho para os conduzir de volta tendo adquirido o cognome de mata-búlgaros), tornando as fronteiras do Danúbio novamente seguras, recuperava parte da Síria aproveitando-se do enfraquecimento político muçulmano, expandia a sua influência para o Cáucaso.
sábado, outubro 11, 2003
Plano Marshall
Para quem acha que a hegemonia americana foi a pior coisa que aconteceu ao mundo desde Gengis Khan, nada melhor que contemplar a obra-prima do general George C. Marshall, guerreiro e diplomata como houve poucos.
Para muitos (senão a maioria), a predominância dos Estados Unidos nos últimos 60 anos tem sido tudo menos benigna. Como acontece com todos os domínios mais ou menos imperiais (e isto levava-nos para outra discussão, muito mais extensa), o dos Estados Unidos também está cheio de episódios lamentáveis, criminosos, ridículos, patéticos, e o que mais de negativo o leitor conseguir imaginar.
O problema aqui é de grau. A última grande potência global pré-1945 foi a Grã-Bretanha, e basta ler um pouco sobre a história do império britânico (recomendo “The Rise and Fall of the British Empire”, de Lawrence James, publicado pela St. Martin’s Press) para perceber que os americanos, face ao poder esmagador de que dispõem, até o têm utilizado com relativa parcimónia. Os ingleses, com bem menos recursos, não hesitavam em recorrer às ameaças, à humilhação e à sua especialidade favorita, a chamada “diplomacia de canhoneira”. Se os “nativos” (e isto incluía-nos a nós, portugueses, como se viu em 1890, no Ultimato) não se “portassem como deve ser”, mandavam-se umas quantas canhoneiras para “metê-los na ordem”. Incidentes destes, hoje em dia impensáveis, ocorreram às dezenas, e eram provocados por motivos tão triviais como a prisão (legítima) de um súbdito de Sua Majestade. Raro era o ano em que não havia um "Iraque" ou um "Afeganistão", muitas vezes porque um coronel qualquer estava aborrecido pela falta de caça decente ou de um bom jogo de pólo. Era o que os britânicos chamavam “espalhar os valores da Cristandade ocidental”.
Utilizando as categorias de Joseph Nye, o poder dos Estados Unidos tem sido muito mais soft do que hard: valores, cultura, sonhos, e não tanto armas, soldados, invasões. Nesta perspectiva, o Plano Marshall é o auge da política de segurança americana. Nunca na história da Humanidade o vencedor tinha estendido a mão aos derrotados da forma que os Estados Unidos o fizeram após a 2ª Guerra Mundial – cheia de dinheiro. Harry Truman, que, pelos padrões europeus, seria tão ou mais bronco que George W. Bush, teve a larga visão de dar ao seu secretário de Estado os meios necessários ao cumprimento de um plano decisivo para o Ocidente: desenvolvimento, bem-estar, paz, segurança.
Se a Europa é o que é hoje, deve-o em boa medida ao general Marshall. Ele percebeu, tal como Lincoln 80 anos antes, que a força dos Estados Unidos estava na magnanimidade. Ele percebeu que, para assegurarem a sua segurança e a fidelidade aos valores da democracia liberal, os europeus precisavam muito mais de dinheiro do que de armas, ou soldados. Percebeu também que a guerra tinha acabado, e que os alemães deviam ter acesso à abastança americana, tal como os ingleses ou os franceses.
É claro que nada disto foi feito desinteressadamente. Os americanos sabiam que boa parte dos biliões de dólares que emprestaram iriam servir para comprar produtos americanos. Sabiam também que estavam a apertar com um nó extremamente forte o laço de dependência da Europa em relação aos EUA (só agora, passados quase 60 anos, ele parece ceder). Mas nada disso dilui o facto dos Estados Unidos terem fornecido os meios necessários à reconstrução europeia, sem exigirem em troca um papel directo na condução dos assuntos desses países.
O melhor símbolo da herança de Marshall é, infelizmente, uma construção feia e triste que dividiu um país inteiro. Ele não a quis, nem a mandou fazer, mas sem o seu plano ela, provavelmente, só seria necessária muito mais tarde. É que em 1961, quando o muro de Berlim começou a ser construído, o fosso entre o nível de vida da Alemanha federal e o da RDA era já gigantesco. É preciso não esquecer (e como parece difícil às vezes...) que o Muro foi construído a Leste, e não a Oeste. Bem vistas as coisas, a Guerra Fria pode muito bem ter sido perdida/ganha logo ali. Quando um regime constrói uma gigantesca prisão para evitar que os seus cidadãos vão procurar noutro lado aquilo que ele próprio não é capaz de lhes dar, as hipóteses de sobrevivência não são famosas...
Para muitos (senão a maioria), a predominância dos Estados Unidos nos últimos 60 anos tem sido tudo menos benigna. Como acontece com todos os domínios mais ou menos imperiais (e isto levava-nos para outra discussão, muito mais extensa), o dos Estados Unidos também está cheio de episódios lamentáveis, criminosos, ridículos, patéticos, e o que mais de negativo o leitor conseguir imaginar.
O problema aqui é de grau. A última grande potência global pré-1945 foi a Grã-Bretanha, e basta ler um pouco sobre a história do império britânico (recomendo “The Rise and Fall of the British Empire”, de Lawrence James, publicado pela St. Martin’s Press) para perceber que os americanos, face ao poder esmagador de que dispõem, até o têm utilizado com relativa parcimónia. Os ingleses, com bem menos recursos, não hesitavam em recorrer às ameaças, à humilhação e à sua especialidade favorita, a chamada “diplomacia de canhoneira”. Se os “nativos” (e isto incluía-nos a nós, portugueses, como se viu em 1890, no Ultimato) não se “portassem como deve ser”, mandavam-se umas quantas canhoneiras para “metê-los na ordem”. Incidentes destes, hoje em dia impensáveis, ocorreram às dezenas, e eram provocados por motivos tão triviais como a prisão (legítima) de um súbdito de Sua Majestade. Raro era o ano em que não havia um "Iraque" ou um "Afeganistão", muitas vezes porque um coronel qualquer estava aborrecido pela falta de caça decente ou de um bom jogo de pólo. Era o que os britânicos chamavam “espalhar os valores da Cristandade ocidental”.
Utilizando as categorias de Joseph Nye, o poder dos Estados Unidos tem sido muito mais soft do que hard: valores, cultura, sonhos, e não tanto armas, soldados, invasões. Nesta perspectiva, o Plano Marshall é o auge da política de segurança americana. Nunca na história da Humanidade o vencedor tinha estendido a mão aos derrotados da forma que os Estados Unidos o fizeram após a 2ª Guerra Mundial – cheia de dinheiro. Harry Truman, que, pelos padrões europeus, seria tão ou mais bronco que George W. Bush, teve a larga visão de dar ao seu secretário de Estado os meios necessários ao cumprimento de um plano decisivo para o Ocidente: desenvolvimento, bem-estar, paz, segurança.
Se a Europa é o que é hoje, deve-o em boa medida ao general Marshall. Ele percebeu, tal como Lincoln 80 anos antes, que a força dos Estados Unidos estava na magnanimidade. Ele percebeu que, para assegurarem a sua segurança e a fidelidade aos valores da democracia liberal, os europeus precisavam muito mais de dinheiro do que de armas, ou soldados. Percebeu também que a guerra tinha acabado, e que os alemães deviam ter acesso à abastança americana, tal como os ingleses ou os franceses.
É claro que nada disto foi feito desinteressadamente. Os americanos sabiam que boa parte dos biliões de dólares que emprestaram iriam servir para comprar produtos americanos. Sabiam também que estavam a apertar com um nó extremamente forte o laço de dependência da Europa em relação aos EUA (só agora, passados quase 60 anos, ele parece ceder). Mas nada disso dilui o facto dos Estados Unidos terem fornecido os meios necessários à reconstrução europeia, sem exigirem em troca um papel directo na condução dos assuntos desses países.
O melhor símbolo da herança de Marshall é, infelizmente, uma construção feia e triste que dividiu um país inteiro. Ele não a quis, nem a mandou fazer, mas sem o seu plano ela, provavelmente, só seria necessária muito mais tarde. É que em 1961, quando o muro de Berlim começou a ser construído, o fosso entre o nível de vida da Alemanha federal e o da RDA era já gigantesco. É preciso não esquecer (e como parece difícil às vezes...) que o Muro foi construído a Leste, e não a Oeste. Bem vistas as coisas, a Guerra Fria pode muito bem ter sido perdida/ganha logo ali. Quando um regime constrói uma gigantesca prisão para evitar que os seus cidadãos vão procurar noutro lado aquilo que ele próprio não é capaz de lhes dar, as hipóteses de sobrevivência não são famosas...
sexta-feira, outubro 10, 2003
Das (in)utilidades da História
Um dos problemas das sociedades democráticas é a falta de cultura histórica dos cidadãos. Isso, todavia, não quer dizer que acredite que a História nos possa dar grandes lições para o presente, como muitas vezes se diz. Ela é irrepetível, e por isso mesmo não se presta a grandes ensinamentos práticos, aplicáveis. Um governante, frente a uma decisão vital, só (deve) pode contar com ele mesmo e com o conhecimento concreto que tem da sua realidade. Quando muito, pode procurar nos lustres do passado a inspiração e a coragem mais ou menos místicas que lhe possam faltar. Sempre que vejo um daqueles livros que procuram, com casos e episódios do passado, justificar políticas e opções do presente, fujo logo para outra prateleira. Os casos e descasos da História fazem-me lembrar os ditados populares: são todos verdadeiros; têm todos uma moral; e há pelo menos um para justificar todas as decisões e atitudes que se possam tomar na vida, por mais contrárias que sejam.
Posto isso, por que raio temos nós de saber o que aconteceu a um monte de gente morta?
Muito simples – para não fazerem de nós parvos; para sabermos o que não queremos (Nazismo, Comunismo, quase todos os “ismos”); para sermos gratos a quem nos fez bem; para percebermos que o Mundo, apesar de todas as suas gigantescas injustiças e crueldades, é melhor do que era.
Posto isso, por que raio temos nós de saber o que aconteceu a um monte de gente morta?
Muito simples – para não fazerem de nós parvos; para sabermos o que não queremos (Nazismo, Comunismo, quase todos os “ismos”); para sermos gratos a quem nos fez bem; para percebermos que o Mundo, apesar de todas as suas gigantescas injustiças e crueldades, é melhor do que era.
quinta-feira, outubro 09, 2003
Guerra Civil Americana II
O leitor “Astinus”, cujo comentário desde já agradeço, põe grandes reservas à ideia de que os Estados Unidos tenham recuperado facilmente da divisão que conduziu à guerra civil.
Esta é uma questão sobre a qual o debate académico (e não só) é ainda bastante aceso. Para muitos americanos, especialistas ou não, “Astinus” estará mais perto da verdade do que eu. Não há dúvida que a Reconstrução (o período pós-guerra em que os estados do Sul foram reintegrados na União) foi uma época difícil e traumatizante para os vencidos. A presença militar federal, a “invasão” dos políticos, homens de negócios e simples oportunistas do Norte (os carpetbaggers), e ainda o facto de muitos ex-escravos se recusarem a manter a anterior relação de subserviência total, tudo isto causou, para além da guerra, traumas duradouros na sociedade sulista.
Lincoln, aliás, tinha plena consciência disto. O período final da guerra e os primeiros dias de paz, até ao seu assassinato, mostram-nos um presidente permanentemente empenhado em estabelecer uma paz magnânima com o Sul. O objectivo é claro: assegurar um pós-guerra pacífico, que permita a solidificação definitiva da União.
Com o assassinato de Lincoln, o controlo da política de Reconstrução passou para o Congresso. E aí, a animosidade em relação ao Sul era muito grande. Os brancos sulistas sentem que Washington os trata como cidadãos de 2ª. É nessa altura que surge o Ku Klux Klan, liderado por Nathan Bedford Forrest, um dos melhores comandantes de cavalaria no exército confederado. O KKK aparece não só como uma resposta ao clima de desordem que atravessa o Sul, como também uma forma dos brancos sulistas voltarem a assumir o controlo da situação (a ideologia vem mais tarde). Se quisermos ver como a mitologia sulista da “Causa Perdida” reconstruiu todo este período, basta ver esse extraordinário filme chamado “O Nascimento de uma Nação”, de D. W. Griffith.
É também indiscutível que, ainda hoje, há muitos brancos do Sul (os chamados “neoconfederados”) que olham com nostalgia para o breve período em que formaram uma entidade política autónoma, conhecida por Estados Confederados da América.
Posto isto, há que lembrar um facto incontornável: desde 1865 não houve um único movimento minimamente credível a propor uma nova secessão dos estados do Sul. Se pensarmos que a guerra durou 4 anos e matou cerca de 600 mil pessoas (ainda hoje é o conflito mais sangrento da história americana), é absolutamente notável que não tenham voltado a haver grandes erupções de violência secessionista nos Estados Unidos. Compare-se este quadro histórico com o de qualquer outro país que tenha passado por um conflito civil intenso, e rapidamente se percebe que este é mesmo um caso especial.
Russell F. Weigley, em “A Great Civil War” (Indiana University Press), propõe uma tese interessante que explica esta especificidade. Para ele, os confederados nunca se libertaram completamente da sua lealdade à União. Quase todos os principais líderes políticos e militares do Sul serviram a União fielmente durante muitos anos, alguns em altos cargos. Mesmo com a guerra, era-lhes difícil quebrar um laço emocional tão profundo. Daí que, perdida a guerra convencional, nenhum deles optou pela guerrilha, essa eterna praga dos países em guerra civil (veja-se Portugal durante as Guerras Liberais). Todas as forças confederadas, mesmo aquelas que tinham feito guerrilha sem piedade, renderam-se ordeiramente no final do conflito. Weigley diz, e para mim com razão, que os americanos tinham um problema a resolver – a escravatura. Libertados os escravos, já nada havia que os separasse.
Esta é uma questão sobre a qual o debate académico (e não só) é ainda bastante aceso. Para muitos americanos, especialistas ou não, “Astinus” estará mais perto da verdade do que eu. Não há dúvida que a Reconstrução (o período pós-guerra em que os estados do Sul foram reintegrados na União) foi uma época difícil e traumatizante para os vencidos. A presença militar federal, a “invasão” dos políticos, homens de negócios e simples oportunistas do Norte (os carpetbaggers), e ainda o facto de muitos ex-escravos se recusarem a manter a anterior relação de subserviência total, tudo isto causou, para além da guerra, traumas duradouros na sociedade sulista.
Lincoln, aliás, tinha plena consciência disto. O período final da guerra e os primeiros dias de paz, até ao seu assassinato, mostram-nos um presidente permanentemente empenhado em estabelecer uma paz magnânima com o Sul. O objectivo é claro: assegurar um pós-guerra pacífico, que permita a solidificação definitiva da União.
Com o assassinato de Lincoln, o controlo da política de Reconstrução passou para o Congresso. E aí, a animosidade em relação ao Sul era muito grande. Os brancos sulistas sentem que Washington os trata como cidadãos de 2ª. É nessa altura que surge o Ku Klux Klan, liderado por Nathan Bedford Forrest, um dos melhores comandantes de cavalaria no exército confederado. O KKK aparece não só como uma resposta ao clima de desordem que atravessa o Sul, como também uma forma dos brancos sulistas voltarem a assumir o controlo da situação (a ideologia vem mais tarde). Se quisermos ver como a mitologia sulista da “Causa Perdida” reconstruiu todo este período, basta ver esse extraordinário filme chamado “O Nascimento de uma Nação”, de D. W. Griffith.
É também indiscutível que, ainda hoje, há muitos brancos do Sul (os chamados “neoconfederados”) que olham com nostalgia para o breve período em que formaram uma entidade política autónoma, conhecida por Estados Confederados da América.
Posto isto, há que lembrar um facto incontornável: desde 1865 não houve um único movimento minimamente credível a propor uma nova secessão dos estados do Sul. Se pensarmos que a guerra durou 4 anos e matou cerca de 600 mil pessoas (ainda hoje é o conflito mais sangrento da história americana), é absolutamente notável que não tenham voltado a haver grandes erupções de violência secessionista nos Estados Unidos. Compare-se este quadro histórico com o de qualquer outro país que tenha passado por um conflito civil intenso, e rapidamente se percebe que este é mesmo um caso especial.
Russell F. Weigley, em “A Great Civil War” (Indiana University Press), propõe uma tese interessante que explica esta especificidade. Para ele, os confederados nunca se libertaram completamente da sua lealdade à União. Quase todos os principais líderes políticos e militares do Sul serviram a União fielmente durante muitos anos, alguns em altos cargos. Mesmo com a guerra, era-lhes difícil quebrar um laço emocional tão profundo. Daí que, perdida a guerra convencional, nenhum deles optou pela guerrilha, essa eterna praga dos países em guerra civil (veja-se Portugal durante as Guerras Liberais). Todas as forças confederadas, mesmo aquelas que tinham feito guerrilha sem piedade, renderam-se ordeiramente no final do conflito. Weigley diz, e para mim com razão, que os americanos tinham um problema a resolver – a escravatura. Libertados os escravos, já nada havia que os separasse.
terça-feira, outubro 07, 2003
As guerras Gempei
No séc. XII deu-se um conflito no Japão que teria enormes repercussões na sua história: dois clãs de origem imperial degladiaram-se até ao extermínio total de um deles.
O Japão fôra fortemente influenciado pela cultura da China. No séc. VII tinham sido enviadas missões e embaixadas para aquele país, de onde se copiaram numerosos elementos: a arte, religião, técnicas, instituições. Procedeu-se a uma centralização do território tendo por base a figura do Imperador, auxiliado pela poderosa família Fujiwara (monopolizando os cargos de regente, chanceler e tudo o que tinha importância). A nobreza foi atraída para a corte, ocupando-se com cargos administrativos e funções honoríficas.
A partir do séc. IX, algumas famílias oriundas da família imperial ficaram encarregues de funções de guerra e pacificação contra a etnia Ainu, no norte (ou nas guerras entre facções); os guerreiros foram lentamente adquirindo um conjunto de valores e uma consciência de grupo à parte, que os levaria a desejar a tomada do poder. No séc. XII, as famílias tradicionais palacianas (nomeadamente os Fujiwara) tinham perdido a maior parte do seu poder fora da capital imperial, em favor dos clãs dedicados à guerra que controlavam a nova casta.
Os dois clãs mais importantes, os Taira e Minamoto (aqueles mais refinados devido à sua proximidade com o Imperador, estes mais rústicos) acabaram, depois várias peripécias e numerosos combates que duraram décadas, por resolver definitivamente a sua contenda numa batalha naval chamada Dan no Ura: os Taira foram completamente exterminados. Os Minamoto gozaram por pouco tempo a sua vitória, sendo substituídos poucas décadas depois pelos Hojo, e assim por diante. Mas mais importante do que estabelecer o vencedor, foram as alterações que essa vitória implicou. O grande vencedor, Minamoto Yoritomo, fora proclamado shogun, governador militar do país. Os cargos civis eram assim desprovidos de valor - o que importava era o controlo de homens, que dava acesso a territórios e à possibilidade de lhes pagar. Os Taira tinham tentado manter a ficção de que nada se modificara durante o período do seu governo, mas os Minamoto decidiram legalizar uma situação que já existia de facto. O Imperador ficava reduzido a mera figura decorativa religiosa e simbólica, assim como as velhas famílias palacianas. Mas, no entanto, nenhum dos vencedores alguma vez ousou proclamar-se imperador. E se a família dominante começava a perder força, imediatamente os outros clãs aproveitavam-se do facto para a destituir.
Do ponto de vista cultural deu-se um inegável empobrecimento: o grupo mais dinâmico era o dos samurais, cuja especialidade era a guerra, e só no séc. XVII este se dedicaria também às artes. Mesmo os monges iriam, por força das necessidades, dedicar-se às armas, criando os temíveis “sohei” - soldados levemente protegidos, mas especialistas em artes marciais. A composição de numerosas baladas e o épico “Heike Monogatari” (que relata as guerras entre Taira e Minamoto) não compensa a relativa seca da seiva artística.
Outro elemento que podemos constatar é a longevidade das famílias e a relativa estabilidade, que durou séculos, até se dar o corte no séc. XII.
O Japão fôra fortemente influenciado pela cultura da China. No séc. VII tinham sido enviadas missões e embaixadas para aquele país, de onde se copiaram numerosos elementos: a arte, religião, técnicas, instituições. Procedeu-se a uma centralização do território tendo por base a figura do Imperador, auxiliado pela poderosa família Fujiwara (monopolizando os cargos de regente, chanceler e tudo o que tinha importância). A nobreza foi atraída para a corte, ocupando-se com cargos administrativos e funções honoríficas.
A partir do séc. IX, algumas famílias oriundas da família imperial ficaram encarregues de funções de guerra e pacificação contra a etnia Ainu, no norte (ou nas guerras entre facções); os guerreiros foram lentamente adquirindo um conjunto de valores e uma consciência de grupo à parte, que os levaria a desejar a tomada do poder. No séc. XII, as famílias tradicionais palacianas (nomeadamente os Fujiwara) tinham perdido a maior parte do seu poder fora da capital imperial, em favor dos clãs dedicados à guerra que controlavam a nova casta.
Os dois clãs mais importantes, os Taira e Minamoto (aqueles mais refinados devido à sua proximidade com o Imperador, estes mais rústicos) acabaram, depois várias peripécias e numerosos combates que duraram décadas, por resolver definitivamente a sua contenda numa batalha naval chamada Dan no Ura: os Taira foram completamente exterminados. Os Minamoto gozaram por pouco tempo a sua vitória, sendo substituídos poucas décadas depois pelos Hojo, e assim por diante. Mas mais importante do que estabelecer o vencedor, foram as alterações que essa vitória implicou. O grande vencedor, Minamoto Yoritomo, fora proclamado shogun, governador militar do país. Os cargos civis eram assim desprovidos de valor - o que importava era o controlo de homens, que dava acesso a territórios e à possibilidade de lhes pagar. Os Taira tinham tentado manter a ficção de que nada se modificara durante o período do seu governo, mas os Minamoto decidiram legalizar uma situação que já existia de facto. O Imperador ficava reduzido a mera figura decorativa religiosa e simbólica, assim como as velhas famílias palacianas. Mas, no entanto, nenhum dos vencedores alguma vez ousou proclamar-se imperador. E se a família dominante começava a perder força, imediatamente os outros clãs aproveitavam-se do facto para a destituir.
Do ponto de vista cultural deu-se um inegável empobrecimento: o grupo mais dinâmico era o dos samurais, cuja especialidade era a guerra, e só no séc. XVII este se dedicaria também às artes. Mesmo os monges iriam, por força das necessidades, dedicar-se às armas, criando os temíveis “sohei” - soldados levemente protegidos, mas especialistas em artes marciais. A composição de numerosas baladas e o épico “Heike Monogatari” (que relata as guerras entre Taira e Minamoto) não compensa a relativa seca da seiva artística.
Outro elemento que podemos constatar é a longevidade das famílias e a relativa estabilidade, que durou séculos, até se dar o corte no séc. XII.
segunda-feira, outubro 06, 2003
Bibliografia
Alguma bibliografia:
Para o artigo sobre Alexandre “ O mundo Helenístico” das Ed. 70. Um livro de divulgação que trata sobretudo da vertente cultural, do mundo grego pós-Alexandre.
Para a história puramente factual “A história da Grécia antiga” da Europa América. Nenhum desses livros é uma obra-prima de originalidade, mas são de fácil acesso.
Para o artigo sobre Alexandre “ O mundo Helenístico” das Ed. 70. Um livro de divulgação que trata sobretudo da vertente cultural, do mundo grego pós-Alexandre.
Para a história puramente factual “A história da Grécia antiga” da Europa América. Nenhum desses livros é uma obra-prima de originalidade, mas são de fácil acesso.
quarta-feira, outubro 01, 2003
Turcos Otomanos
Os turcos são um conjunto de povo de origem asiática bastante espalhado: existem na China, nas antigas repúblicas soviéticas e claro na Turquia. Esta foi obra de um conjunto de tribos que a partir do séc. XIV se salientou na Ásia menor: beneficiando da decadência de Bizâncio e das divisões dos países cristãos acabou por estabelecer depois da conquista de Constantinopla aí a sua nova capital com o nome de Istambul. Senhores de um território que ia do Egipto (depois da derrota dos mamelucos), até aos Balcãs, tentaram a aventura em Viena: falharam primeiro em 1529 e depois em 1683. Tornaram-se os campeões da ortodoxia sunita contra os persas embora tivessem tido o apoio a princípio dos dervixes. Também sofreram uma grande derrota naval em Lepanto em 1571.Entraram no imaginário da época como cruéis e bárbaros. Apoiaram o corso que fazia o raid nas costas mediterrâneas, tornando-se odiados. No entanto grande parte dessa fama era imerecida: mostravam-se tolerantes com os cristãos, qualquer que fosse a confissão, e vivendo sobretudo da pilhagem do inimigo não precisavam de lançar grandes impostos no seu território. Utilizavam um sistema de meritocracia para a promoção: crianças cristãs raptadas eram criadas como bons muçulmanos para o exército (a célebre guarda dos janízaros) e administração pública e esse regime vigorou até ao séc. XVII.
Aos poucos o quadro começou a degradar-se: as guerras eram menos proveitosas e mais custosas à medida que os exércitos cristãos iam evoluindo; pelo contrário, a evolução do armamento otomano entregue a corporações muito conservadoras criava armas bem concebidas mas que iam progressivamente ficando menos actualizadas, enquanto que a mentalidade do exército cristalizava-se no período das grandes vitórias. Começaram a ter de aumentar os impostos, deixou de se recrutar funcionários dentro das camadas pobres, os sultões passaram mais tempo no harém que nos campos de batalha perdendo o controle do exército que passava juntamente com os eunucos e janízaros a escolher dentre dos numerosos filhos do sultão qual iria suceder (uma vez que nunca se impôs a sucessão primogénita). O séc. XVIII viu o aprofundar do fosso com o ocidente e apesar de alguns sobressaltos: convencidos da sua superioridade, tinham pouco interesse em aprender algo com os infiéis e ficavam satisfeitos com as instituições do período tardo-medieval. De facto o problema não era a nível tecnológico mas de mentalidades e institucional. Só nos anos 20 com Mustafá Kemal (e perdidos grande parte dos territórios do império) se fez a modernização da sociedade turca (apesar de todas as dificuldades que ainda hoje se sentem, nomeadamente a nível de direitos do homem).
Aos poucos o quadro começou a degradar-se: as guerras eram menos proveitosas e mais custosas à medida que os exércitos cristãos iam evoluindo; pelo contrário, a evolução do armamento otomano entregue a corporações muito conservadoras criava armas bem concebidas mas que iam progressivamente ficando menos actualizadas, enquanto que a mentalidade do exército cristalizava-se no período das grandes vitórias. Começaram a ter de aumentar os impostos, deixou de se recrutar funcionários dentro das camadas pobres, os sultões passaram mais tempo no harém que nos campos de batalha perdendo o controle do exército que passava juntamente com os eunucos e janízaros a escolher dentre dos numerosos filhos do sultão qual iria suceder (uma vez que nunca se impôs a sucessão primogénita). O séc. XVIII viu o aprofundar do fosso com o ocidente e apesar de alguns sobressaltos: convencidos da sua superioridade, tinham pouco interesse em aprender algo com os infiéis e ficavam satisfeitos com as instituições do período tardo-medieval. De facto o problema não era a nível tecnológico mas de mentalidades e institucional. Só nos anos 20 com Mustafá Kemal (e perdidos grande parte dos territórios do império) se fez a modernização da sociedade turca (apesar de todas as dificuldades que ainda hoje se sentem, nomeadamente a nível de direitos do homem).
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