quinta-feira, janeiro 29, 2004

Vermeer

Hoje decidi fazer um breve intervalo sobre as questões militares do Alto Império Romano e divulgar este site do meu pintor favorito Vermeer, usando como pretexto o facto de um filme sobre ele ter sido nomeado para os óscares. Pintava cenas aparentemente do quotidiano (uma jovem burguesa a ler uma carta- embora isso diga bastante sobre o grau de alfabetização dos países paixos no séc. XVII comparado com Portugal), uma criada a conversar, ou paisagens; no entanto, normalmente existia uma forte carga simbólica (a leitura da carta continha elementos diferentes consoante fosse do marido ou de um amante, etc), que se torna por vezes de difícil compreensão. Mas são quadros belíssimos de qualquer modo.

quarta-feira, janeiro 28, 2004

Algumas evoluções do exército romano-II

Claro que por vezes havia excepções e em situação de emergência recrutava-se quem estava disponível; como exemplo, Marco Aurélio recrutou duas legiões em Itália depois de um desastre porque precisava de tropas urgentemente; por vezes as unidades eram literalmente “arrebanhadas” num local da fronteira sem se preocupar com os elevados graus de exigência habituais. Marco Aurélio numa situação de aflição, chegou ao ponto de comprar escravos e gladiadores e pô-los a combater; essa tradição já vinha da república. Normalmente o prémio era a liberdade e a cidadania para os sobreviventes.
Quando chegamos ao reinado de Nero (assassinado em 69 DC), só metade dos legionários era originária de Itália; a outra metade era já constituída por
Colonos, pois pela amostra da onomástica que sobreviveu, vê-se que a maioria eram mesmo descendentes de oriundos de Itália. Como é que se vê isso? Bem, quando um auxiliar era desmobilizado e adquiria a cidadania, ele adoptava o nome do imperador da época para nome de família (ou do governador por vezes) e esse nome passava para os seus descendentes. Como muitos tinham o hábito de colocar nos seus túmulos uma estela com o seu nome, e breve descrição de vida (de onde vieram, anos de serviço, condecorações), os arqueólogos adquirem muita informação estatística sobre esses soldados. E consegue-se detectar há quanto tempo uma família é cidadã pelo nome imperial que tiver; se tiver um nome vulgar, é porque provavelmente são descendentes de uma família italiana comum que emigrou. Assim se consegue ver que no séc. I e II os soldados são a princípio maioritariamente italianos, depois descendentes a viver em colónias e finalmente soldados romanizados. Vemos também que o ocidente era aquele que fornecia mais soldados habitualmente (é normal, era mais pobre e considerado selvagem), vindo a princípio da Ibéria, Africa e Gália, muito pouco da Bretanha; depois a Ilíria e Dalmácia começam a fornecer soldados em abundância. No oriente, o Egipto sempre forneceu os seus soldados para defesa estritamente local (contra beduínos). As outras províncias forneciam soldados para as várias províncias. Infelizmente o número de elementos que sobreviveu é parcelar e tem de ser visto com muitas cautelas (até que ponto, alguns milhares de estelas sobreviventes são significativos? O caso das tropas é Africa e Egipto é bem conhecido devido à excelente conservação de registos devido ao clima). De qualquer modo, a arqueologia permitiu responder a questões que não passavam de debate teórico no séc. XIX por os textos clássicos não se preocuparem com esses assuntos.

terça-feira, janeiro 27, 2004

Algumas evoluções do exército romano

O exército de Augusto (faleceu em 14 d.C.), era com algumas excepções de origem italiana. Eram proletários descendentes de pequenos proprietários que tinham ficado arruinados devido por um lado à concorrência dos produtos agrícolas mais baratos dos territórios conquistados (que usavam mão-de-obra escrava) e por outro as guerras com o seu contínuo recrutamento de trabalhadores que desorganizava a produção. Dera-se assim uma concentração nas mãos de alguns grandes proprietários. Esses soldados sem outro objectivo além de enriquecer com as pilhagens e a atribuição de uma terra terminado o seu período de serviço (uma vintena de anos), eram bastante voláteis na sua fidelidade.
Essas tropas iriam ser bastante importantes (como se aprende já na escola primária) no processo de romanização. Iriam ser libertadas do seu serviço numa colónia distante (Península Ibérica, Gália, Africa), recebendo uma propriedade e divulgando o seu latim. De seguida um ou mais filhos iriam seguir as pisadas do pai ingressando no exército (normalmente por tradição familiar, embora razões económicas pesassem também; a documentação ainda é muito escassa nas motivações), sendo assim filhos de cidadãos romanos de origem italiana, mas já não italianos, eles próprios. Mas este não seria o único grupo de cidadão a entrar no exército. Com Augusto surge o hábito de organizar as unidades auxiliares compostas por não cidadãos (normalmente os recrutas eram de zonas relativamente bárbaras e mais bélicas) e organizá-las de forma semelhante às legiões; para recompensa-los de um bom serviço, é-lhes concedido por vezes a nacionalidade romana terminado o período de alistamento, hábito que umas décadas depois se iria tornar prática obrigatória. Ora esses soldados iriam também ser importantes na divulgação da romanização, já que divulgariam o latim aprendido no exército; os seus filhos seguiriam também para o exército, mas como legionários, já que eram filhos de cidadãos. Todos eles deviam saber pelo menos ler, falar latim que se compreendesse, obedecer a uns requisitos mínimos físicos, não terem qualquer condenação por crime; podemos ver que o grau de exigência era elevado. Era possível (quando era feito o recrutamento obrigatório), pagar a alguém que efectuasse o serviço com o substituto, desde que ele fosse considerado elegível; se um escravo fosse escolhido, as penas eram severas. Existia uma preocupação de manter um exército de qualidade.

sexta-feira, janeiro 23, 2004

Os Etruscos-II

Davam um enorme valor às mulheres: estas podiam participar nos banquetes juntamente com os homens (para escândalo dos gregos e romanos que os consideravam decadentes e efeminados), e nenhum etrusco se iria esquecer de enumerar a sua mãe junto do pai no seu túmulo.
Tinham uma arte de influência conotada como oriental. Celebravam em frescos encontrados nos túmulos a arte de viver e festas constantes. Davam também (de algum modo semelhante aos egípcios) enorme valor à vida após a morte. De facto grande parte do que nos chegou foi através dos seus túmulos, que pretendiam ser réplicas das casas onde a alma do morto iria viver (pouco ficou das suas cidades por usarem materiais perecíveis como madeira e tijolo e por esses espaços ainda serem habitados hoje). Eram assim depositados objectos de uso diário (embora embelezados) e esculpidos numerosos outros. A sua arte era muito mais estilizada que a grega (como esta fora no princípio);
progressivamente foi-se helenizando (mantendo sempre um toque arcaico e distinto), e os últimos vestígios de arte tradicional são do séc. II AC; a língua ter-se-ia extinto pouco depois, correspondendo ao processo de latinização da Itália.
A sua religião influenciou em muito a romana: tinham rituais de adivinhação (normalmente implicando o sacrifício de um animal), assim como ritos propiciatórios.
Com a anexação da Etrúria, os sacerdotes eram escolhidos muitas vezes dessa zona, mesmo séculos depois da língua ter sido esquecida e os etruscos se terem latinizado, repetindo palavras e ritos de que ninguém sabia já o verdadeiro significado, mas que se repetia para não ofender os deuses, tal era o conservadorismo romano.
Transformaram Roma, uma mera aldeia (ou aldeias), numa cidade, num processo que ainda é pouco conhecido, sendo todo envolvido em lendas.
Uma última curiosidade: quando Augusto (séc. I AC) decidiu colocar a tratar dos assuntos culturais um amigo, escolheu um etrusco de velhas famílias chamado... Mecenas... cujo nome ficaria a adquirir a conotação que tem agora, graças ao seu apoio à cultura.

quarta-feira, janeiro 21, 2004

Os etruscos

Os etruscos na minha opinião são os bizantinos da antiguidade; fala-se sempre da importância da transmissão da cultura clássica à Europa via os árabes, esquecendo-se os bizantinos. Diz-se que os romanos copiaram os gregos, ignorando os etruscos. No primeiro caso é má consciência, no segundo é esquecimento.
Heródoto escreveu que os etruscos tinham vindo da Ásia no séc. XII AC. para a Etrúria (que corresponde aproximadamente à Toscânia em Itália) . Os historiadores até muito recentemente calculavam que essa migração se dera no séc. VIII AC. Actualmente alguns autores sugerem que os etruscos seriam os povos pré-indo-europeus que residindo nessa zona, mercê de várias influências, teriam criado uma civilização original. Ou seja, não se tem certeza de nada.
O que se sabe exactamente? Era um povo que falava uma língua que não pertence à família indo-europeia (o grego, latim, germânico são exemplos dessa família), que não é aparentada com línguas conhecidas, e não se decifra. Conhece-se o alfabeto, e numerosas palavras mas a estrutura da língua é um mistério (só restarem pequenas frases em túmulos e estátuas não ajuda, uma vez que a literatura desapareceu toda).
Eram uma civilização urbana e sofisticada. Possuíam uma aristocracia que dominava as cidades, que se associavam em ligas. No seu apogeu, estenderam-se do norte junto ao rio Pó, até à Campánia no sul de Itália. Dominaram o comércio do mediterrâneo ocidental até enfrentarem os gregos que lhes arrebataram esse domínio. Em terra, viram os celtas quebrar o seu predomínio (séc. IV AC), o que os enfraqueceu perante o poder crescente de uma sua criação, Roma, que acabou por os submeter no séc. III AC.
No exército, usavam a formação e equipamento hoplita, composta por tropas divididas segundo a sua categoria social, acrescidos de mercenários, normalmente gregos ou italiotas (os romanos achavam que eles só valiam mesmo pelo número, porque a qualidade e homogeneidade deixavam muito a desejar). Uma vez conquistados, foram aliados perfeitamente fieis.
Para além da sua aristocracia, possuíam uma importante classe mercantil e artesanal.

quinta-feira, janeiro 15, 2004

Anedotas sem piada

Herodes o grande (aquele que no Novo Testamento teria supostamente mandado matar as crianças inocentes de Belém por ter medo que um deles fosse o novo Messias) era tão paranoico que mandou matar vários filhos seus, de modo que Augusto disse que era mais seguro ser o seu porco (como judeu razoavelmente escrupuloso não comia carne de porco) do que seu filho.
No Heike Monogatari, refere-se uma imperatriz viúva, que apesar de já não ser jovem, ainda permanecia bela (tinha 23 anos)

terça-feira, janeiro 13, 2004

Heike Monogatari-III

É preciso não esquecer, que os Taira (tal como os seus rivais, os Minamoto) eram de descendência imperial (com uns 300 anos) só que tinham-se ruralizado, perdendo assim toda a possibilidade de reclamar fosse o que fosse aos olhos dos Fujiwara e outros clãs cortesãos.
Casaram membros seus com membros da família imperial (o imperador Antoku seria filho de uma Taira).
De forma completamente diferente agiram os Minamoto: estes não quiseram saber dos cargos imperiais, bastando-lhes o domínio das armas, deixando os cargos que se tinham esvaziado de funções para os cortesãos. Este é já a sociedade dos filmes de Akira Kurosawa.
Uma curiosidade: no livro aparece a referência a um Ashikaga (clã que dominou o shogunato do séc. XIV a XVI): a personagem terá mesmo existido ou será que foi colocada no poema para agradar aos senhores do séc. XIV?
Já agora, fiquem a saber que os Heike eram os Taira (daí o nome das guerra Gempei entre os Genji- Minamoto e os Heike- Taira. Confuso?
È dada enorme importância à cultura chinesa, e cada vez que se planeia uma mudança contra as tradições, é apresentado um exemplo da história chinesa (por vezes da japonesa também). E temos de ser justos: embora a visão do mundo seja reaccionária, o poema não começa a denegrir sistematicamente os que são criticados e eles apresentam os seus motivos que são perfeitamente válidos e não caricaturas. Se os Taira caem devido aos seus pecados (subiram mais do que deviam graças à bondade imperial- e aí o poema “esquece” a força das armas- abusaram da sua posição e apesar da bondade de alguns membros como Shigemori, estão destinados a ser destruídos pelos deuses pois tal é o Karma).
Não é uma epopeia guerreira: embora sejam descritas batalhas, não é feito o recitar interminável de espadeiradas e feridas como no Beowulf ou a Ilíada; mais depressa se descreve a roupa de um general. É um poema que tinha que agradar a vários públicos e não apenas a samurais. O estilo aliás é mais de uma crónica.
Ainda só li uma parte do livro, mas quando descobrir mais coisas interessantes, posto-as.

sexta-feira, janeiro 09, 2004

Heike Monogatari-II

A sociedade descrita no poema é profundamente complexa dadas as mutações que se estão a dar (a acção decorre na segunda metade do séc. XII embora sejam feitas referências a acontecimentos anteriores). O poema é em si reaccionário, pois não vê com bons olhos a tomada do poder pelos samurais, que vão perturbar o equilíbrio imemorial (vê-se assim que é um mundo muito diferente daquele que é descrito nos filmes de samurais, em que os guerreiros e os seus valores são o centro da sociedade). Os cortesãos monopolizavam os cargos e obtinham-nos pelas suas ligações familiares acrescido de redes de amizade (detentores de cargos, familiares imperiais, imperadores, imperadores retirados- pois era hábito ao fim de alguns anos estes abdicarem para se livrarem da rigidez da etiqueta, adquirindo maior liberdade de movimentos), ou pela sua mestria em artes importantes como o domínio da etiqueta, a caligrafia, a interpretação de um instrumento ou recitação de poesia. Uma vez obtido o cargo (digamos de ministro, ou governador) e recebendo-se os rendimentos, era nomeado um adjunto que exercia efectivamente o cargo e que tinha a trabalheira de se deslocar e governar. Como a hereditariedade era fundamental para se obter um cargo (embora as intrigas determinassem quem obtinha o quê), os “Busho” (guerreiros) provinciais estavam completamente sem hipótese de ascender mesmo que se deslocassem à capital, por não terem antepassados gloriosos, ficando sempre reduzidos a combater por ordens superiores. Esta é a sociedade considerada ideal pelo poema (várias vezes é lamentada a sorte de um cortesão ministro que é destituído e exilado por ter conspirado contra os Taira, apesar de ser um excelente tocador de flauta ou algo do género sendo substituído por um Taira que apenas se dedica ao cargo e a combater). Ora o ponto de vista destes era diferente do habitual: se alguém beneficiava do seu apoio, devia ser totalmente devotado e não devia andar a mudar de fidelidade; se o fizesse era um traidor. Lógica simples, pragmática, mas que caiu mal nos meios cortesãos, habituados a intrigas subtis. Os Taira rapidamente adquiriram os cargos-chave, apoiando-se na sua clientela militar, mas também se preocuparam em adquirir cargos de importância simbólica (ministro da direita, da esquerda, capitão de 1º, 2º, 3º grau, etc).

quinta-feira, janeiro 08, 2004

Guerra Peninsular


Soube aqui que foram descobertos em Arapiles, Espanha, restos mortais de soldados que combateram num dos mais importantes confrontos da Guerra Peninsular - a batalha de Salamanca. Para quem não sabe, a designação "Guerra Peninsular" cobre a guerra sem quartel que opôs os exércitos de Napoleão Bonaparte às tropas anglo-portuguesas comandadas por Arthur Wellesley, mais conhecido por duque de Wellington. As nossas "Invasões Francesas" foram apenas uma parte (muito importante, é certo) de um conflito mais vasto que envolveu toda a península. A Guerra Peninsular, por seu lado, é também apenas uma parte (mais uma vez, muito importante) das Guerras Napoleónicas.

Na Grã-Bretanha há um verdadeiro culto do estudo da participação britânica neste conflito. Todos os anos, milhares de ingleses visitam Waterloo, na Bélgica, o local onde se deu a batalha final que ditou a derrota de Napoleão. A Guerra Peninsular e as Invasões Francesas de Portugal são também muito estudadas, porque é nos campos de batalha portugueses que Wellington começa a mostrar o seu génio militar. Muitos ingleses vêm a Portugal propositadamente para conhecer as Linhas de Torres Vedras, os campos da Roliça e Vimeiro e o Buçaco.

Em Arapiles talvez ainda se vá a tempo de salvar aquela parte do campo de batalha. Aqui em Portugal, infelizmente, já não há muito para destruir, porque quase tudo já foi destruído há muito tempo. Isto, aliás, só reflecte o interesse que esta parte da nossa história tem despertado - quase nenhum. O Exército, com os seus escassos meios, ainda tem feito alguma coisa para preservar aquilo que tem a ser cargo: edifícios e alguns campos de batalha que ainda estão dentro de áreas militares. Os historiadores, cegos pelos preconceitos da cartilha da Nova História, que considerava a História Militar como um género menor, devotaram um desprezo quase total a este tema, à documentação e, pior, ao património.

Nos últimos anos a situação começou a melhorar, mas o número de trabalhos sobre as Invasões é ainda muito pequeno. Espero que a publicação da «Nova História Militar» do Círculo de Leitores, que agora se iniciou, dê um grande contributo para trazer novos interessados para este capítulo tão importante da História de Portugal. Em 2007 vai-se celebrar o segundo centenário da primeira invasão francesa (comandada pelo general Junot), e sei que já há planos para assinalar o acontecimento. O Instituto de Defesa Nacional e a Comissão Portuguesa de História Militar têm gente a trabalhar nesse projecto. Gostava, pelo menos, de ver concretizados os planos de recuperação e aproveitamento das Linhas de Torres Vedras, um dos maiores conjuntos mundiais de fortificações. Gostava também de ver publicados alguns trabalhos de autores portugueses; à falta disso, ao menos que se editem algumas das excelentes obras britânicas que já existem - a começar pela monumental «History of the Peninsular War" de Sir Charles Oman. Já não era pouco...

sábado, janeiro 03, 2004

Era Atómica

O aparecimento das armas nucleares foi um acontecimento transcedente em muitos aspectos. Para além dos meramente militares (como é que se ganha uma guerra atómica?), ou dos filosóficos e éticos (será que há alguma coisa que justifique desencadear-se uma guerra em que não há hipóteses de vitória, nem sequer de sobrevivência?), havia outros mais burocráticos, mas nem por isso menos vitais, que ocuparam a cabeça de muita gente, durante muito tempo.

É assim que, enquanto uns tentavam criar estratégias vencedoras (tarefa felizmente inglória, como sabemos), outros, no Ocidente, proclamavam alegremente que «Better red than dead» («mais vale ser comuna vivo, do que capitalista morto»), e outros ainda preocupavam-se em saber quem mandaria nas coisas se o pior acontecesse.

Ora, nos anos quarenta e cinquenta, ninguém dos dois lados da Cortina de Ferro sabia muito bem o que andava a fazer relativamente a estes assuntos. Pela primeira vez na História havia a possibilidade muito real da Humanidade se aniquilar a si própria e, portanto, estava-se a entrar em território desconhecido. Por outras palavras, não havia livros de instruções para nada disto, e por isso tinha-se que ir inventando à medida que se ia avançando (se é que lhe podemos chamar isso...).

Os sistemas de aviso prévio (radares) eram ainda rudimentares e as infra-estruturas de protecção dos sistemas de governo e respectivos titulares eram pouco fiáveis. Em caso de ataque nuclear era bem provável que o governo norte-americano, ou o soviético, não soubessem atempadamente o que se estava a passar. Todos os principais governantes poderiam muito bem morrer nos primeiros minutos da guerra.

Daí que a administração do presidente Dwight Eisenhower (1952-60) tenha tomado uma atitude que nos pode parecer estranha, mas que, no contexto da época, talvez fizesse algum sentido. Foram enviadas cartas a vários líderes económicos e sociais, espalhados um pouco por todos os Estados Unidos, dando-lhes poderes para administrar várias áreas de actividade do país, caso um ataque nuclear incapacitasse o governo.

Repare-se, nenhum destas figuras tinha sido designada através de qualquer procedimento trasparente estabelecido previamente para isto. Tratou-se apenas de uma decisão arbitrária de Eisenhower. Depois, já durante a administração Kennedy, percebeu-se que as coisas não podiam funcionar assim, e tratou-se de revogar as cartas enviadas por Ike. O documento que nos mostra isso está aqui.

É facil, em retrospectiva, olhar para as cartas como uma manifestação maligna de um qualquer Dr. Estranhoamor. Para mim, só mostra que tempos perigosos obrigam a decisões muito difíceis, em que prevalece a lei do mal menor. Algo muito difícil de entender nos dias de hoje, e que leva a que os Homens de Estado sejam cada vez mais raros.